terça-feira, 16 de janeiro de 2018

No que tange a mim, lembro-me da seguinte experiência: Quase chorando de dor nos pés lesionados postos em sapatos abertos, num frio terrível e enfrentando um vento gelado, eu ia mancando na longa coluna do caminho de vários quilômetros entre o campo local e o da obra. Meu espírito ocupava-se sem cessar com os milhares de pequenos problemas de nossa mísera vida de campo de concentração. Que vamos comer à noite? Não será melhor trocar a rodela de extra de linguiça, que talvez receberemos, por um pedaço de pão? Será que devo negociar por uma tigela de sopa o último cigarro que sobrou do "prêmio" de duas semanas atrás? Como vou conseguir um pedaço de arame para substituir o que quebrou e que servia para fechar os sapatos? Será que vou me integrar em tempo ao habitual grupo de trabalho no local da obra, ou vão me despachar para outra turma com capataz brutal e violento? E que poderia eu fazer para cair no agrado de determinado capo, que me poderia proporcionar a imensa felicidade de ser utilizado como trabalhador de depósito no próprio campo de concentração, de modo que não precisasse mais acompanhar diariamente essa marcha terrível? Já me causa repugnância essa compulsão cruel que força meu pensamento a se atormentar diária e constantemente só com esse tipo de problemas. Eis que então aplico um truque: vejo-me de repente, ocupando a tribuna de um grande auditório magnificamente iluminado e aquecido, diante de mim um público a ouvir atento, sentado em confortáveis poltronas, enquanto vou falando; dou uma palestra sobre a psicologia no campo de concentração, e tudo aquilo que tanto me tortura e oprime acaba sendo objetivado visto e descrito da perspectiva mais alta da ciência... Através desse truque consigo alcançar de algum modo, acima da situação, colocar-me acima do tempo presente e de seu sofrimento, contemplando-o como se já estivesse no passado como e como se eu mesmo, com todo o meu tormento, fosse obejto de uma interessante investigação psicológico -- científica -, por mim mesmo empreendida. Diz Espinoza em sua Ética: "Affectus, qui passio est, desint esse passio simulatque eius claram et distintactam formamus ideam" (A emoção que é sofrimento deixa de ser sofrimento no momento em que dela formamos uma ideia clara e nítida." - Ética, quinta parte: "Do poder do espírito ou a liberdade humana", sentença III). 

Frankl E V (1905-1997), 2017. Em busca de um sentido, p. 95 e 96. 42ª ed. Editora Vozes

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